– O Brasil descobre a Rússia

O eldorado dos empresários brasileiros tem sido, para muitos, a China. Porém, as multinacionais brasileiras descobriram a Rússia. Veja que bacana as particularidades em se administrar lá, e o que os brasileiros têm encontrado:

 

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Por Cristiane Mano, de Kaliningrado

Duas coisas chamam a atenção de quem olha pela ampla janela de vidro do prédio de três andares que abriga a nova fábrica da Sadia em Kaliningrado, na Rússia. A primeira delas é o imenso descampado nos arredores, uma extensa planície à margem do mar Báltico. A outra é a série de guindastes que pontua o horizonte. Ali está o sinal do surgimento de uma das mais prósperas áreas industriais da Rússia. Até pouco tempo atrás, o enclave do território russo entre a Polônia e a Lituânia, com tamanho semelhante ao do estado de São Paulo, não passava de uma base militar quase abandonada. Mantida por sua estratégica proximidade da Europa, a área é o único ponto do território russo que não congela no inverno. Nos últimos cinco anos, uma série de incentivos fiscais e o espantoso crescimento do país atraíram 56 indústrias de diversos países para Kaliningrado. O terreno onde a Sadia ergueu sua fábrica estava há tanto tempo abandonado que os operários encontraram, a menos de 2 metros de profundidade, armas, cintos e capacetes deixados ali por soldados durante a Segunda Guerra Mundial. Em janeiro deste ano, além da Sadia, outra empresa brasileira iniciou operações a poucos quilômetros dali — a fabricante paulista de freezers comerciais Metalfrio. As duas passaram a compor, junto com a fabricante de ônibus gaúcha Marcopolo, o time das primeiras empresas brasileiras que decidiram desbravar o território russo e montar fábricas no país. (…) “As multinacionais brasileiras com ambições globais primeiro se concentraram na China e na Índia. Agora, a Rússia entrou nesse circuito obrigatório”, diz o especialista Álvaro Cyrino, da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte.
Uma das características mais evidentes do ambiente de negócios russo é sua monumental burocracia, capaz de fazer com que as repartições e os cartórios brasileiros pareçam brincadeira de criança. O olhar do governo de Moscou paira até sobre detalhes, como o local de hospedagem de estrangeiros no país. Há um mês, em sua última visita à Rússia, Ruben Bisi, diretor de operações internacionais da Marcopolo, foi barrado no embarque do aeroporto de Pavlovo, a cerca de 400 quilômetros ao leste de Moscou. O policial abriu o passaporte e perguntou onde estava o recibo carimbado pelo hotel — uma das maneiras de o governo russo controlar o trânsito de estrangeiros. Como o documento havia ficado na casa que a Marcopolo mantém em Pavlovo para funcionários brasileiros, Bisi ficou numa saia-justa. “Paguei 150 dólares de multa para que o burocrata me desse o tal carimbo no papel e me dissesse que eu podia ir embora.”
A burocracia russa já resultou em conseqüências mais sérias. “Tudo é mais difícil do que imaginávamos e tivemos de atrasar em cerca de seis meses a operação”, diz o catarinense Hugo Gauer, ex-diretor do escritório alemão da Sadia e principal executivo da nova operação em Kaliningrado desde janeiro deste ano. Durante a obra, sucessivos problemas para obter a autorização de uso de energia elétrica no local fizeram com que a construção fosse iniciada sem luz. Com equipamentos movidos a geradores, os operários usaram capacetes com lanternas (similares aos de mineradores) para enfrentar a escuridão durante meses, até que a situação se normalizasse. Devido à lentidão do governo, por enquanto apenas as linhas de produção de hambúrgueres e de nuggets estão em operação em Kaliningrado. As outras duas (de massas congeladas e de embutidos) aguardam autorização do governo local e devem ser iniciadas no segundo semestre. A Sadia já juntou cerca de 40 páginas de documentos apenas para a aprovação de um dos sistemas de aquecedores de uma dessas linhas e já passou por duas inspeções de fiscais russos. A Marcopolo também enfrentou situações difíceis para desembaraçar produtos nos portos. “Já tivemos cargas retidas por 60 dias no porto russo”, diz Bisi.
As peculiaridades do mercado local explicam por que Sadia e Marcopolo optaram por um sócio russo. “Achamos mais simples começar com alguém que já soubesse as regras do jogo”, diz Gilberto Tomazoni, presidente da Sadia. (…) Além de experts em burocracia, as empresas brasileiras instaladas na Rússia já perceberam a necessidade de ter outro profissional, digamos, incomum: um chefe de investigação. Responsável pelo patrulhamento ostensivo de funcionários, clientes e fornecedores, esse funcionário se reporta diretamente ao principal executivo da operação no país. Sua função é proteger a empresa da ação do crime organizado russo, que costuma criar sofisticados esquemas de desvio de dinheiro dentro das companhias. Para o cargo, a Sadia contratou o ex-funcionário da KGB Sergey Karpa. “Já aconteceu de não fazermos negócios com determinada empresa por indicação dele”, afirma Gauer.
Encontrar mecanismos para motivar os funcionários tem se mostrado um dos maiores desafios para as empresas brasileiras. Num país que viveu décadas sob um regime comunista, a meritocracia não surte muito efeito. Os russos, em geral, se motivam mais para evitar uma penalidade do que pela chance de ganhar um bônus. Para seguir a cultura local, Sadia e Metalfrio adaptaram a política que conduzem em suas matrizes e estipularam não apenas um bônus para bons resultados como também um desconto na remuneração caso as metas não se cumpram. “Chamo de modelo Dostoiévski, à base de crime e castigo”, diz Eduardo Nogueira, diretor da Metalfrio na Rússia, que possui 200 funcionários em sua unidade em Kaliningrado. Nogueira também teve de se adaptar à maneira como se comunica com os subordinados. “Para ser levado a sério, o chefe tem de bancar o general de vez em quando”, diz ele, um dos poucos executivos brasileiros capazes de se comunicar em russo com seus subordinados. “Tive de aprender o idioma porque os executivos daqui não falavam uma única palavra em inglês”, afirma. A comunicação é uma das dificuldades mais prosaicas — e ao mesmo tempo mais constantes — das empresas instaladas no país. O idioma, que usa o alfabeto cirílico, é uma barreira quase intransponível, diferentemente do que acontece em países europeus ou na América Latina. Na Sadia, as reuniões entre executivos russos e brasileiros são conduzidas em inglês e acompanhadas por um dos três intérpretes contratados pela empresa. Na Marcopolo, a saída foi mais radical. A empresa decidiu conduzir as reuniões com cada participante falando em seu idioma nativo e com tradução simultânea. Os brasileiros tiveram até aulas de russo, mas chegaram à conclusão de que seria mais produtivo seguir na língua-mãe. “É muito difícil. As aulas serviram mais para a gente conseguir dizer o básico”, diz Bisi, que estudou o idioma por dois meses consecutivos.
Transpor barreiras como a língua será essencial para que esse grupo de companhias brasileiras consiga atingir seus nada modestos objetivos. A Marcopolo hoje produz 500 ônibus na Rússia e espera chegar a 2 000 unidades por ano em, no máximo, cinco anos. A Metalfrio tem planos de transformar a operação em Kaliningrado, que hoje produz 375 freezers por dia, numa base de exportação para países vizinhos, como Lituânia e Cazaquistão, e outros países da Europa. Para a Sadia, a meta é construir uma operação do mesmo tamanho da brasileira em uma década — de seu faturamento total de 9,8 bilhões de reais no ano passado, quase metade vem do Brasil. Para quem achava a China complicada, a Rússia pode ser um desafio ainda maior.

 

 

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