– Ética na Medicina, Dr Ben Hur e os Dilemas Médicos!

Um dos “papas” da Medicina, Dr Ben Hur Ferraz Neto, do Hospital Albert Einstein, falou tempos atrás sobre ética na medicina, a não-cobrança de primeiras consultas, a revelação do real estado de saúde aos pacientes e das dúvidas e medos de um médico na hora do transplante de fígado. Interessantíssimo!

Extraído de: http://veja.abril.com.br/141009/caixa-preta-cirurgia-p-17.shtml

CAIXA PRETA NA CIRURGIA

Um dos maiores nomes do transplante de fígado no Brasil diz que deveria haver monitoramento eletrônico nas salas de cirurgia e que o paciente não deveria pagar a primeira consulta

por Adriana Dias Lopes

Quando um paciente aparece no consultório do cirurgião paulista Ben-Hur Ferraz Neto, de 47 anos, é grande a possibilidade de seu caso ter sido considerado inabordável por outros médicos. Seus pacientes são candidatos a um transplante de fígado ou sofrem de câncer em estágio avançado. Com 22 anos de carreira, e 2 000 operações no currículo, Ferraz Neto, chefe do Programa de Transplantes do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, tem propostas revolucionárias, mas de fácil adoção, para melhorar a prática da medicina no Brasil. Todas favorecem o paciente. Só cobrar quando ele aparecer para a consulta de retorno é uma delas. A outra é remunerar os médicos pela qualidade, e não pela quantidade. A mais extraordinária é encarar a sala de cirurgia como o cockpit de um jato comercial e registrar as imagens, sons e dados da operação. Diz ele: “Todos ganhariam com essas informações”.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

Quer uma cirurgia 100% segura? Combine com o cirurgião que se o paciente morrer ele também morre. É isso mesmo?
-Essa é uma máxima cínica que os estudantes de medicina gostam de usar uns com os outros, mas ela não é totalmente divorciada da verdade. Como ocorre com qualquer profissional obrigado a um esforço constante de máxima concentração e de intensa demanda técnica, o cirurgião pode ter momentos de menor concentração. Esses momentos são de pouca consequência para o paciente nos grandes hospitais, em que o cirurgião está cercado de equipamentos adequados e de uma equipe de excelência e bem treinada. Mas, em outros cenários, o desenlace pode ser trágico.

Resumindo, não existe cirurgia 100% segura…
-Exatamente, e não só pelas razões acima. Viver não é 100% seguro. Parte de uma cirurgia é fazer o que foi planejado. Mas a outra parte é reagir aos imprevistos. Por definição, é impossível prever o imprevisto. A probabilidade de um médico ser surpreendido durante a cirurgia varia conforme a complexidade do procedimento. Em um transplante de fígado, uma cirurgia grande, o risco de ocorrer um imprevisto é de 5%. No procedimento para extração da vesícula, essa probabilidade cai para 1%. Na imensa maioria das vezes, esses imprevistos produzem situações contornáveis. A probabilidade de morte durante a operação de trasplante de fígado é de apenas 0,5%. Na retirada da vesícula, é de menos de 0,1%.

“Parte de uma cirurgia é fazer o que foi planejado. Mas a outra parte é reagir aos imprevistos. Por definição, é impossível prever o imprevisto”

O que mais contribuiu para o aumento da segurança na sala de cirurgia?
-A evolução nos equipamentos de imagem contribuiu muito para reduzir os riscos. Esses aparelhos dão ao cirurgião uma ideia bastante fiel do que ele encontrará na situação cirúrgica. Mas eles ainda não fornecem todas as informações necessárias e talvez nunca evoluam a ponto de funcionar como um simulador absolutamente confiável do que será a cirurgia real. Para que isso seja possível não bastam imagens. O aparelho teria de reproduzir a vida em tempo real, com a pulsação, o sangue correndo pelas veias do paciente e o movimento dos órgãos.

Como o cirurgião se prepara para enfrentar imprevistos?
-O cirurgião tem de ter duas qualidades básicas. A primeira é ser resoluto, o que permite tomar decisões rapidamente. A segunda é o autocontrole. Os imprevistos testam ao máximo essas duas qualidades. Elas ajudam o médico a mudar o procedimento de acordo com as exigências da situação.

Os erros médicos nascem desses imprevistos?
-O erro médico, infelizmente, não precisa de imprevisto para ocorrer. Esquecer um pedaço de gaze na barriga do paciente parece algo impossível para quem nunca viu uma cirurgia. Mas essa é uma situação que pode acontecer. A gaze absorve o sangue com muita facilidade e se confunde totalmente com outros elementos do campo cirúrgico. Às vezes, um pedaço de gaze escapa aos olhos do cirurgião. Os bons hospitais têm procedimentos que impedem essa ocorrência. Em toda equipe cirúrgica, há uma pessoa designada para fazer o balanço do número de gazes abertas e comparar com o número de gazes descartadas durante a operação. Os números têm de bater exatamente. Quando isso não ocorre, a pessoa dá o alerta e o paciente é submetido a um exame de raio X antes de a operação ser finalizada. Para que o exame acuse o problema, é preciso que a gaze utilizada seja feita de material radiopaco, que possa ser detectado pelos raios X. Uma gaze desse tipo custa mais caro, mas o investimento vale a pena. Um pedaço de gaze esquecido no corpo do paciente pode causar abscessos, infecções e danificar um órgão. Isso é apenas um exemplo de que os erros médicos fazem parte do nosso universo e é preciso sempre estar atento.

O que seria uma medida realmente efetiva para diminuir esses erros em uma sala de cirurgia?
-Para arrepio de muitos de meus colegas, eu defendo a ideia de que os grandes hospitais instalem “caixas-pretas” nas salas de cirurgia. Uma sala de cirurgia tem muitas similaridades com o cockpit de um jato comercial. Ali são tomadas decisões de vida e morte, e é proveitoso para todo mundo que essas decisões estejam devidamente registradas. Isso não ajudaria apenas a elucidar erros médicos. Serviria para criar um banco de informações de imagens, sons e dados de milhares de cirurgias. Esse banco de dados seria de incomensurável valor para os profissionais médicos, para os pesquisadores e estudiosos. Não se trata de vigiar a equipe, criando uma tensão a mais para os profissionais no ato cirúrgico. A ideia é que a ciência, o conhecimento exposto durante a cirurgia fique registrado e possa ser consultado no futuro.

Por que sua ideia de uma caixa-preta na sala de cirurgia assusta os médicos?
-Acredito que toda ideia nova precisa de um tempo de maturação para ser aceita. Mas acredito muito nela. O paciente seria o grande beneficiado por ela, e acho que muitos prefeririam ser operados em um hospital com caixa-preta na sala cirúrgica a passar por uma cirurgia em um outro que não possua esse item adicional de segurança. Toda garantia que possa ser dada ao paciente deve ser dada. O paciente de uma cirurgia está sempre em uma circunstância extremamente vulnerável. Para começo de conversa, ele está sedado, semidespido, longe dos amigos e da família. Não tem testemunhas para acompanhar os procedimentos que vai sofrer. Já o cirurgião vive a circunstância oposta. Ele está no total controle da situação. Ele sabe o que fazer, comanda os procedimentos dos quais depende a vida do paciente. Acho que se submeter a uma cirurgia é a maior demonstração de confiança que um ser humano pode dar. É justo que a pessoa em um momento desses tenha a segurança de saber que tudo está sendo gravado.

Como reconhecer seu limite como médico?
-O limite é sinalizado pela dúvida. O cirurgião precisa ter respeito pela dúvida. Quando ela surge, ele tem a obrigação de parar, pensar e discutir com a equipe sobre a conduta a ser seguida. É um perigo deixar que as dúvidas prosperem no centro operatório. A situação começa a se deteriorar quando um cirurgião não tem a humildade e a maturidade de dizer um “não” ou um “não sei”.

O senhor costuma dizer muitos “não” e “não sei”?
-Pelo menos uma vez por semana. Mas já foi diferente. O único paciente que perdi na mesa de cirurgia morreu por eu não ter dito um “não”. Aprendi naquele caso que às vezes a melhor coisa a fazer pelo paciente é não fazer nada. Isso ocorreu em 1995. Lembro-me nitidamente de cada detalhe. Foi horroroso. Eu havia acabado de chegar da Inglaterra, e esse era o segundo paciente que iria transplantar com minha própria equipe. Meu primeiro transplante tinha sido um sucesso e eu estava muito entusiasmado, naquele estado em que as pessoas nem sonham que algo de errado possa se passar com elas. Pois foi exatamente o que ocorreu. Apareceu em meu consultório um paciente cujo estado era gravíssimo. Portador de cirrose, ele tinha várias tromboses pelo corpo e já havia sido recusado por mais de um médico. Eu decidi aceitar esse paciente. Estava claro que ele morreria em poucos meses se não fosse submetido a um transplante logo. A cirurgia foi feita algumas semanas mais tarde. Retirei o fígado dele depois de seis horas de operação. Havia sido tudo muito trabalhoso, mas, no geral, estava dando certo. De repente, quando fui reconstruir uma das veias do paciente, um pouco antes de ele receber o novo órgão, o vaso começou a sangrar incessantemente. As veias estavam muito frágeis em decorrência da cirrose. Durante quatro horas tentei controlar o sangramento e nada funcionou. Ele morreu em decorrência da hemorragia. Saí da sala pela escada do centro cirúrgico e não consegui chegar ao final. Sentei em um degrau mal contendo a emoção. Foi uma lição definitiva para mim.

“Nós (os médicos brasileiros) deveríamos passar por um controle de qualidade maior. Acho que isso teria de ser fator determinante na remuneração do médico”

A maioria de seus pacientes está em estado grave. O senhor não se angustia de lidar tão assiduamente com o limite entre a vida e a morte?
-Faço tudo o que estiver ao meu alcance para amenizar o sofrimento causado pela doença. Mas não submeto meu paciente a tratamento que não lhe traga real benefício. Não vejo por que submetê-lo aos efeitos colaterais de uma químio quando isso não tem o menor efeito sobre a doença em si. Esse paciente tem de aproveitar o tempo que lhe resta para fazer aquilo de que mais gosta: conviver com a família, viajar…

O que se deve contar ao paciente sobre seu real estado de saúde?
-Essa é uma discussão complexa. Mas, de uma forma ou de outra, tudo deve ser dito. Eu procuro sentir até onde o paciente deseja mesmo saber. Isso nem sempre é dito em palavras por ele. Pode haver enganos. Certa vez, um paciente com pouco mais de 40 anos sentou-se à minha frente de mãos dadas com a mulher e disse: “Bem, agora que o senhor fez todos os exames, quero saber exatamente minha situação. Não se preocupe com minha reação. Sou bem-sucedido profissionalmente, tenho uma situação financeira estável e minha família ficará bem se eu vier a faltar. Além de tudo, sou um sujeito racional. Sei lidar com emoções”. Revelei, então, seu gravíssimo problema e a impossibilidade de submetê-lo a uma intervenção cirúrgica, o que provocou a indagação de quanto tempo lhe restava de vida. Pela experiência, em casos dessa natureza, embora nunca seja possível precisar o tempo de sobrevivência, acenei com um tempo em torno de seis meses. O olhar dele se congelou. Ele apertou o braço da mulher e falou: “Não te disse, querida, que não era nada grave?”. Foi um processo de imediata negação da realidade. Nunca mais esqueci aquele momento.

Os médicos brasileiros são pouco controlados?
-Sem dúvida. Nós deveríamos passar por um controle de qualidade maior. Qualidade implica o resultado do trabalho, mas também o uso responsável dos recursos. O bom resultado é atingido quando o tratamento traz o benefício proposto. Acho, inclusive, que isso teria de ser fator determinante na remuneração do médico. Em qualquer atividade profissional há indicadores de avaliação. Na medicina, raramente eles existem. No caso dos transplantes, a situação começa a mudar. Em São Paulo, criou-se um sistema que permite aos médicos comparar seus resultados on-line, em tempo real, com a média das demais equipes transplantadoras do estado. Eu tenho batalhado para que esses resultados possam ser consultados por qualquer pessoa, e não apenas pelos médicos. Isso ajudaria o paciente a comparar os dados e escolher com mais segurança a quem ele vai entregar o cuidado com sua saúde.

O que mais ajudaria o paciente a escolher melhor?
-Uma medida simples e revolucionária seria os médicos passarem a cobrar apenas a partir da segunda consulta, no retorno. A primeira consulta deveria durar no mínimo uma hora e ser usada somente para que o médico se inteirasse do problema e avaliasse sua capacidade de oferecer ajuda efetiva ao paciente. Feita a explanação, ele só voltaria se estivesse plenamente de acordo com o que ouviu do médico. Essa ideia também desagrada aos médicos, mas eu os convido a repensá-la. A médio prazo, eles perceberiam que dessa forma passariam a contar com um paciente fiel e com total aderência ao tratamento. Todos ganhariam.

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