Ora, ora, ora… Cinderela, por trás daquele rostinho angelical, era uma vingativa menina que tentou matar a madrasta má?
E o Pinóquio? Batia no seu vovô Gepeto?
Coisas impensáveis no mundo infantil tratadas nesta matéria sobre a personalidade original dos personagens que há tempos encantam as crianças. Sabe quem transformou esses politicamente incorretos em graciosos heróis? Walt Disney!
Extraído de: http://revistaepoca.globo.com/Mente-aberta/noticia/2011/12/pinoquio-nunca-foi-santo.html
PINÓQUIO NUNCA FOI SANTO
A reedição do romance original mostra que Disney mudou a alma do boneco que não podia mentir
Por LUÍZA KARAM
Os estos ingênuos e o olhar dócil com que estamos acostumados a imaginar Pinóquio, o boneco de madeira que tem vida, não são verdadeiros. Pinóquio de verdade é um traquinas. Ele mostra a língua, zomba e dá pontapés no velho Geppetto, que o esculpiu a partir de um pedaço de madeira falante. Tudo isso ainda nos capítulos iniciais do romance As aventuras de Pinóquio – História de um boneco (CosacNaify, 360 páginas, R$ 79,90, tradução de Ivo Barroso), escrito em 1881, que chega às livrarias em edição especial.
“Pinóquio é uma espécie de Macunaíma”, diz Andrea Lombardi, professor de literatura italiana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele compara a transgressão e a vagabundagem do boneco às do herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade. Soa estranho. A versão que se tornou mais popular de Pinóquio é o desenho animado de Walt Disney, lançado em 1940. O boneco-menino conta mentiras e se mete em confusões depois de desobedecer a sua consciência, personificada por um Grilo Falante. No fim, aprende a lição e se arrepende. Pinóquio, escrito há 130 anos pelo comediante italiano Carlo Lorenzini (1826-1890), conhecido como Collodi, também pretendia ser didático – ao estilo da época. A literatura e o teatro de então traziam personagens rebeldes e desbocados. Eles eram, de alguma forma, postos na linha, vigorosamente. Concebida como um folhetim semanal de histórias infantis, a história de Collodi terminava no capítulo XV, com a morte de Pinóquio por enforcamento. Como os leitores protestaram, ele voltou à vida, e a história terminou 21 capítulos depois, com final feliz. A fada e o nariz que cresce quando Pinóquio mente – essenciais na versão de Disney – só surgiram nessa segunda parte do romance.
A divergência entre as histórias de Collodi e de Disney vai além das ênfases neste ou naquele aspecto da trama. Tudo é distinto. As cenas do desenho se passam em paisagens coloridas, alegres. No original, a atmosfera é sombria e assustadora. As roupas que vestem o boneco no filme são, no livro, um casaco feito de papelão, sapatos de cortiça e um chapéu de miolo de pão. Para o escritor Italo Calvino (1923-1985), autor do posfácio da edição brasileira, o romance captura o clima de “vadiagem e de fome, de hospedarias mal frequentadas”, comuns na sociedade italiana da época.
Para além de seus méritos próprios, o sucesso da história de Collodi tem explicações sociais. Em 1880, a unificação italiana acabara de acontecer, mas a união de pequenos Estados numa só monarquia não foi acompanhada pela padronização da língua. Reinavam os dialetos, a comunicação era precária, e o país passava por uma crise de identidade. Quando surgiu o primeiro capítulo de A história de um boneco, a Itália dava seus primeiros passos em direção a uma língua própria. À medida que Pinóquio ganhava humanidade, contribuía para a identidade nacional e se tornava querido pelos leitores. Com Pinóquio, Collodi emergiu do anonimato para a fama – e nunca mais escreveu nada notável. O sucesso do boneco serviu ao menos para que ele fosse promovido à chefia do jornal Il Giornale Per I Bambini.
O conto Pinóquio atraiu Disney pela facilidade de ser visualizado. “Pode ser contado em muitos formatos, pois é fácil fantasiar as imagens capazes de completar cada cena”, diz o professor Lombardi. Os desenhos da nova versão de Pinóquio são a prova disso: o artista paulistano Alex Cerveny usou de técnica do século XIX para dar luz a personagens de expressão e figura divertidas. Pinóquio não foi o único filme inspirado em clássicos infantis que Disney modificou.
Ele mexeu fundo em suas fontes de inspiração. Em Alice no País das Maravilhas, perdeu-se grande parte do nonsense perturbador do livro. Cinderela, cujo original também foi escrito na Itália, começa, na verdade, com o assassinato da madrasta, sob encomenda da própria Gata Borralheira. Os elementos sarcásticos ou violentos são amenizados, mas os traços essenciais não são deixados de lado. Alice, na versão da Disney, ainda conversa com o coelho branco. Cinderela conta com a ajuda de uma fada madrinha. O nariz de Pinóquio também continuou a crescer – e segue crescendo, e assustando as crianças, 130 anos depois.