Claro que não.
Infelizmente, a cultura futebolística não permite que o árbitro possa agir como qualquer cidadão. Se ele criticar a postura de Neymar ou Kleber Gladiador, torcedores mais exaltados dirão que os árbitros perseguem esses atletas. E se elogiar a conduta de qualquer jogador, alegarão favorecimento.
É triste, mas é assim que funciona.
Bem diferente do tênis. Por exemplo: o árbitro brasileiro Carlos Bernardes foi escalado para a final do torneio de Wimbledon, dias atrás (compare com a Copa do Mundo de futebol). Além de ter competência, Carlos Bernardes esbanja simpatia. Lá, ele falou sobre a conduta dos atletas sem nenhum constrangimento ou problema. E com esse jeito, conquistou tenistas, conviveu com eles e é aplaudido e respeitado por onde passa por torcedores!
Aqui, se o árbitro erra um lance, no outro dia não pode sair à rua…
Compartilho bela matéria do OESP sobre a vida do árbitro de tênis Carlos Bernardes, bem diferente da dos árbitros de futebol. Abaixo, extraído de: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-juizo-da-final,742894,0.htm
O JUÍZO DA FINAL
Da cadeira de 2 metros de altura, Carlos Bernardes foi o árbitro da decisão de Wimbledon entre Nadal e Djokovic
Por Flávia Tavares
A 9.530 quilômetros da quadra onde Björn Borg e John McEnroe disputavam a final – que ganhou a fama de ter sido a melhor de todos os tempos – do torneio de Wimbledon, em 5 de julho de 1980, Carlinhos assistia ao espetáculo embasbacado. Ali, na nem tão glamourosa São Caetano do Sul, o rapazote, filho de pai bombeiro e mãe nutricionista, se encantava irremediavelmente com o tênis. Mas hoje é incapaz de lembrar quem era o árbitro da partida.
Pois quase exatos 31 anos mais tarde, o juiz da final de Wimbledon, em seu uniforme de R$ 6 mil, imponente em sua cadeira a dois metros de altura, era Carlinhos, agora Carlos Bernardes. No domingo passado ele arbitrou a decisão entre Rafael Nadal e Novak Djokovic, com vitória do sérvio por 3 sets a 1. Recebeu uma moeda comemorativa, foi convidado para o baile de gala pós-jogo e, desde então, não para de dar autógrafos, acomodar os tapinhas nas costas e sorrir.
Foi longo, mas até natural, o caminho até a grama inglesa. Ainda nos anos 80, um vizinho tinha umas raquetes encostadas e os dois decidiram aprender por conta a técnica dos voleios, saques, backhands, forehands, etc. Pulavam o muro do que hoje é o ginásio Milton Feijão para treinar e acabaram convidados a jogar de fato. Com a morte do pai, um dos heróis do incêndio do Joelma, num ataque cardíaco fulminante, Carlinhos teve de se tornar Carlos Alberto Bernardes Júnior e, aos 15 anos, passou a dar aulas. “Eu era muito quieto, tímido. O tênis mudou isso e minha vida”, diz, serenamente, na sala do departamento de tênis do São Caetano Esporte Clube.
Num torneio internacional no Clube Pinheiros, em 1985 ou 1986, não se lembra bem, foi convocado a atuar como juiz de linha e recebeu um treinamento vapt-vupt para isso. Aos poucos, deixou a raquete e passou a arbitrar cada vez mais, até chegar ao posto de juiz de cadeira, o senhor das regras nas quadras de tênis. O fato de ser negro num ambiente predominantemente branco nunca atrapalhou. E hoje ele é um dos 12 golden badge da Associação dos Tenistas Profissionais (ATP), mais alto posto da categoria, com um salário que pode variar de US$ 50 mil a US$ 100 mil – sem direito a “bicho” por chegar à final.
Entre suas atribuições está o controle da plateia, que não pode se exceder para não desconcentrar os jogadores. Aquela voz que pede silêncio com um “thank you” durante a disputa é dele. “Uma vez tive de dar um pito no Maradona, num jogo entre Potito Starace e David Nalbandian, na Argentina, porque ele torcia como se estivesse num estádio de futebol”, conta Bernardes. “Depois da partida, ficamos amigos.” Ele também fez amizade, por outros motivos, com personalidades como o golfista Tiger Woods.
Mas o que torna um juiz de cadeira realmente bom é a capacidade de aplicar as regras sem tirar os tenistas do sério. Quando aquela bola esbarra na linha por milímetros e o jogador recorre ao desafio (um replay do lance no telão) e está errado, é comum que se frustre. “Há estatísticas que provam que o árbitro está certo em 70% dos casos de desafio”, garante. “Minha tarefa é conversar com o jogador de forma que ele se conforme e consiga voltar sem que isso afete o resultado final da partida.” Por isso, muitas vezes a comunicação se restringe a um aceno com a cabeça, para conter os ânimos. Bernardes não se incomoda com o recurso tecnológico que pode desmentir suas decisões. Apenas acha injusto que ele não esteja disponível para todos. Em Wimbledon, das 19 quadras, apenas 4 dispunham do recurso. “É como se os demais jogadores participassem de outra competição na prática.”
Nem só de contestações se compõem as relações entre o juiz e os tenistas. Depois de uma jogada espetacular, é comum que ele troque um olhar de espanto e admiração com um deles ou com os juízes de linha, discreto o suficiente para que não seja captado pelas câmeras de TV. A partida mais sensacional que “apitou” não foi a primeira final de um juiz um sul-americano no US Open, de 2006, mas o jogo entre Andre Agassi e James Blake naquele mesmo ano. “Era noite e foi um jogo inesquecível, muito bem jogado.”
Bernardes se sente confortável para contar que gosta de arbitrar jogos do suíço Roger Federer. “Ele é pura técnica, impecável. Nadal é mais força. E Djokovic vem numa evolução surpreendente.” A final do último domingo foi tranquila, sem grandes pressões: apenas dois desafios e uma correção, que é quando o juiz tem de rever uma decisão de um juiz de linha. Na definição do brasileiro, “um jogo bonito”.
O que o abalou mesmo foram as manifestações de carinho que recebeu depois que seu nome foi selecionado para ser o primeiro brasileiro a comandar uma final do tradicional torneio, em sua 125ª edição. Como a do tenista sueco Jonas Björkman, que gritou “Brasil! Brasil!” nos corredores entre as quadras de Wimbledon. Ou da namorada Francesca, também juíza, com quem mora em Bérgamo, na Itália. Ou da filha Anna Luiza, de 12 anos, diretamente de São Caetano. “Não esperava repercussão tão grande. Recebi e-mails de pessoas que não via há anos.” Na salinha de tênis do São Caetano Esporte Clube, autografou bolinhas felpudas como se fosse o campeão. E quem dirá que não é?
