Embalada pelo sucesso da novela “Caminho das Índias” da Rede Globo, a última edição da Revista Exame traz uma interessante matéria sobre como os dalits, retratados como uma parcela marginalizada e desgraçada da população indiana, vivem dentro das empresas locais. A IBM, por exemplo, tem um programa exclusivo de recrutamento a eles.
Extraído de: http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0951/mundo/chance-parias-496075.html
UMA CHANCE PARA OS PÁRIAS
por Tatiana Gianini
O sistema de castas na Índia foi abolido por lei nos anos 50. Mas o costume de segregar indivíduos de acordo com o histórico de seus ancestrais continua a ser uma prática aceitável na sociedade. Nascer dalit — nome dado à casta que forma o degrau mais baixo da pirâmide social indiana — é como nascer com uma maldição. O sinônimo para dalit é “intocável”, pois os hindus acreditam que se tornam impuros ao passar a mão em alguém dessa casta. A eles sobra apenas trabalho considerado sujo, como limpar bueiros e cuidar de cadáveres. Por isso, embora representem quase 20% da população, os dalits ocupam apenas 0,02% das vagas no mercado de trabalho formal, segundo a estimativa mais otimista. Romper a maldição é a tarefa a que algumas empresas com atuação na Índia vêm se propondo a executar. Para um mundo corporativo que se preocupa cada vez mais com a inclusão das minorias, a experiência da Índia é, de longe, a mais desafiadora de que se tem notícia. O acesso dos portadores de deficiência às empresas, o fim da discriminação de cor ou gênero, a equiparação salarial de mulheres e homens nos escritórios e nas linhas de produção — nada disso se compara ao tamanho do problema dos dalits e à tarefa de derrubar uma barreira formada por uma tradição de mais de 3 000 anos, desde que se originou o sistema indiano de castas.
No grupo das companhias que estão enfrentando o tabu indiano há multinacionais estrangeiras, como a americana IBM, e grandes empresas locais, casos da Infosys e do grupo Tata. Uma das estratégias mais comuns para tentar vencer a barreira é no processo de seleção de empregados. Nos últimos meses, por exemplo, o grupo Tata anunciou uma política batizada de “discriminação positiva” — uma espécie de ação afirmativa para os intocáveis. No caso de candidatos à mesma vaga e com qualificações semelhantes, os dalits levam vantagem. A regra valerá mesmo quando o desempenho das pessoas da casta ficar um pouco abaixo do de seus concorrentes em alguns quesitos. A IBM já adota tática semelhante em seus processos de recrutamento. “Os indianos de castas inferiores são pessoas muito espertas, muito inteligentes”, afirmou a EXAME o americano Ron Glover, vice-presidente mundial de diversidade da IBM. “Não faz sentido ficarem excluídos das oportunidades.”
Na maior parte das vezes, a discriminação dos dalits no mercado de trabalho começa no momento em que a pessoa diz seu sobrenome — a origem social na Índia é identificada por meio deles. Thoti e Kamble, por exemplo, são sobrenomes dalits, que funcionam como barreira de entrada no início dos processos de seleção. Em janeiro deste ano, o centro de pesquisas Indian Institute of Dalit Studies (IIDS) mandou currículos de candidatos com perfis de formação semelhantes, mas com sobrenomes diferentes. O resultado foi impressionante: a taxa de aprovação dos indianos com sobrenomes de castas altas foi quase o dobro em relação ao universo dos dalits.
Os poucos que conseguem passar pelo funil do recrutamento enfrentam preconceito no local de trabalho. No programa da IBM, por exemplo, os dalits que ingressam na equipe são treinados por mentores dentro da empresa — em geral, executivos de castas superiores. “Alguns de nossos funcionários já se recusaram a fazer isso”, diz Glover.
Além desse tipo de discriminação, os intocáveis geralmente entram em desvantagem nos processos de recrutamento pela falta de oportunidades de desenvolvimento — de origem miserável, a maioria não passou por boas escolas. Para suprir essa lacuna de formação, muitas empresas criaram cursos especiais de preparação. A gigante indiana de tecnologia Infosys, por exemplo, começou em 2006 seu programa de formação e inserção de dalits. Batizado de Special Training Program (STP), o programa consiste num curso técnico destinado a estudantes de faculdades de engenharia “socialmente em desvantagem” (na prática, dalits e outras minorias nacionais, como tribos rurais). Com duração de seis meses, o STP é realizado em parceria com o governo, que indica os alunos, e universidades locais. Em 2008, 552 estudantes participaram — ao final do processo, 83% deles foram contratados por grandes empresas do setor de TI, como Infosys, HP e Wipro.
Nem todas as empresas resolveram enfrentar o problema das castas por razões altruístas. Nos últimos anos, o governo indiano passou a exigir que as empresas contratassem dalits e outros grupos excluídos. O primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, afirmou que “medidas extremas” serão tomadas caso as empresas não se empenhem no processo. Isso gerou no setor privado o temor de que o governo imponha um sistema de cotas para as minorias nas companhias privadas. As políticas em favor das minorias sociais se fortalecem à medida que a economia da Índia cresce. Setores como o de tecnologia da informação começaram a se deparar com a falta de profissionais minimamente preparados. Do outro lado do muro, um número grande de jovens dalits recém-formados em cursos como engenharia era desperdiçado em funções pouco qualificadas. A escassez de recursos revelou o absurdo da situação.
Algumas companhias, mesmo que não levantem tão abertamente a bandeira dos excluídos como faz o grupo Tata, contratam dalits e reconhecem seu talento há tempos. Desde sua fundação, em 1968, o fabricante de armas e produtos químicos Sarda Group emprega dalits. Hoje, quase metade da equipe de 120 funcionários é formada por intocáveis. “Aqui a questão das castas nunca foi um problema, o importante é demonstrar habilidades para fazer um bom trabalho”, disse a EXAME o empresário Suresh Sarda, da família de proprietários da empresa. “O progresso da Índia demorou a chegar aos dalits. Felizmente, hoje vejo que eles estão reescrevendo seu papel em nossa sociedade.”
